terça-feira, 27 de março de 2007

Sonho português

Foi na conversa que ouviu no café que se apercebeu de que o sonho português inclui um emprego, sem trabalho, na função pública, com um horário que dê para sair dois minutos antes das cinco da tarde. O sonho português pressupõe levar a melhor sobre o parceiro, e não necessariamente por ser criativo ou resolver problemas, apenas levar a melhor. O dono do sonho português gosta mesmo é de dizer mal. É a maior diversão nacional. Elogiar é que nem pensar, não fique o outro convencido e a julgar-se melhor do que ele por tão pouco. Só isso! A cabeça onde cresce o sonho português é invejosa mas nem sabe bem de quê. Apenas quer o que não é seu. É isso! E se não chega lá, mais vale que ninguém o faça. O sonho português, o sonho português, o sonho português mais parece um pesadelo.

domingo, 25 de março de 2007

Surpresa

Felismino mudou por uns tempos em função da sua nova paixão. Nunca tinha cozinhado, à excepção de ovos na frigideira e atum com massa, o mais pop dos pratos. Mas daquela vez "apetecia-lhe algo, algo diferente". Não lhe bastava comprar comida feita, pronta a ir para o microondas. Quando ela se ausentava, preenchia a sua ausência entre tachos e utensílios de cozinha. Experimentou massas variadas, polvilhadas com ervas exóticas, receitas vegetarianas ricas em temperos, que ela não se cansava de elogiar assim que provava. O que lhe dava ainda mais gozo era a surpresa final: a sobremesa. Revelá-la antes do momento certo é que nem pensar. Era o segredo dos seus jantares. Em troca desse segredo, ela dizia-lhe outro. Às vezes não era nada de especial, podia passar por uma revelação elementar, como a forma como apreciava homens com barba de leves tons ruivos. Ele conquistava segredos. Ela dava pontos aos seus pratos. Até que ele decidiu tirar um curso de culinária aos fins-de-semana e se apaixonou por Mariazinha, a melhor aluna da classe.

sexta-feira, 23 de março de 2007

Parlamento

No campo, os enigmas são outros. O tio avô desapareceu sem deixar rasto. O lenhador que ele contratou foi entregar a madeira sozinho, o que nunca tinha acontecido. A irmã de 99 anos insistiu em perguntar por ele, pois, a primeira resposta criou-lhe inquietação. "Ele não estava em casa", respondeu. "A filha também não sabia dele". Logo ele: tão pontual, certinho. Correu até à vizinha para lhe pedir que ligasse à sobrinha. Ela ligou. A filha não sabia dele e estranhou a ausência. Foi averiguar. Morava ao lado dele, tinha essa vantagem. A irmã, de 99 anos, a mais preocupada, aproveitou para pedir um segundo telefonema para a outra sobrinha que vivia longe mas que estava a par de tudo como se morasse no piso de cima. Ela não poderia saber, mas teria uma explicação. Tinha-a quase sempre e isso tranquilizava-a. Pouco depois, o telefone tocou. A vizinha atendeu: "Ah, sim, pois, não costuma ser assim". Assim que pousou o telefone, disse: "Ele não está no parlamento, a filha foi lá ver". Os 99 anos pesaram-lhe então em cima dos pés, ficando quase sem forças. Os ombros caíram. "Podes ligar-me outra vez para a minha sobrinha?". A vizinha disse que sim. Desta vez, falou ela: "Ele não está no parlamento, ninguém sabe dele, teria alguma consulta no hospital?". A sobrinha começou por perguntar: "No parlamento?". Afinal, um banco de uma paragem de autocarro mesmo em frente ao café servia de parlamento. Um grupinho de amigos com uma média de 80 anos passava grande parte do dia no parlamento. Ali, falavam das manchetes dos jornais que estavam em cima da mesa do café, falavam mal do Sócrates, da ministra da Educação, da reforma que não estica, do padre amante da pinga. Discutiam, lançavam graçolas. A melhor piada era repetida, contada ao que estava a chegar. Assim se passava parte do dia. Naquela manhã, o tio avô esteve no parlamento bem cedo. Mas não resistiu a um convite para ir à feira com o compadre, que lhe prometeu uma viagem curta: iam e vinham numa esfregadela de olho. Quando chegou, já era ele o motivo da conversa no parlamento.

quinta-feira, 22 de março de 2007

Preguiça

Cada um tem os seus truques. Falar das coisas com os amigos não é a única alternativa. Conversar com um estranho pode dar bons resultados. Assim fiz: Contei-lhe que não fazia nada de especial nesta vidinha e que às vezes era muito preguiçosa. O culto da preguiça também tem exigências, indiquei: esvaziar a cabeça, limpar alguns departamentos. Pode ainda superar-se a chatice de forma radical: bebendo muito e fazendo o maior número de disparates possível numa noite fora de casa. No dia seguinte, a ressaca toma conta de ti e desvalorizas algumas coisas. O desconhecido perguntou: "Mas és alcoólica? ". Parei uns segundos, antes de lhe responder: "A última vez que bebi foi no ano passado". "Então?". "Sou preguiçosa. Devia sair mais vezes e beber mais uns copos".

quarta-feira, 21 de março de 2007

Detalhes

Como dizia Frank Lloyd Wright, "o amor está nos detalhes". Faça-se a lista: tique no olho, gaguez que acompanha falatório sério, risadas a propósito muito particular, forma de limpar o nariz. Esta última não conta, claro. Era a gozar. Passaram-se as primaveras - coisa mais foleira, desconheço - e as mangas das camisolas dele continuam a reclamar limpeza. "Lá estás tu!", diz ela. "Nem dei por isso", diz ele. O nariz parece limpo, mas opto pelo pescoço. Tem mais terreno à disposição e não quero arriscar.

terça-feira, 20 de março de 2007

ele tinha um sonho

Ainda pensava no que podia passar-se na cabeça de Valentim Loureiro para este querer ser julgado diante das câmaras, quando um telefonema lhe assaltou a mente. E qualquer coisa mudou. O resto ficou em suspenso. Em câmara lenta, deslocou-se para o sofá, dobrou as pernas para dentro, enquanto perdia o olhar no espaço amplo que via da janela. Estava letárgica, meia adormecida. O telefonema, que telefonema! Uma volta de 180º graus revolucionou o sentido da sua atenção. "Quero lá saber o que leva alguém suspeito, com problemas nos tribunais, a dizer que quer ser julgado para todos verem!". Quando chegou aqui, sinal que tinha abandonado o estado de distracção ambulante, quis desocupar a mente de pensamentos estéreis. Tinha, no entanto, de dar desfecho ao raciocínio, arrumá-lo, mesmo que fosse mal arrumado. Vai já para a despensa. Ok: Valentim Loureiro quer ser protagonista de uma série ao jeito "Law and Order", sobre advogados. Será o sonho dele? Que se lixe: colocou a história na gaveta dos devaneios com figuras que são notícia, onde está "Pinto da Costa gostava dela".

sexta-feira, 16 de março de 2007

Cansaço

Troquei rapidamente de cassete, deixei o trabalho para trás, fui a correr para o bar, falei aceleradamente, bebi sem olhar para o copo, peguei no troco mas não sei onde o meti, apanhei um táxi a pensar na chegada a casa, adormeci a planear a manhã, levantei-me com a imaginação posta num sofá que me receberia no regresso. Pelo meio, nunca disse o que queria dizer, fingi não estar a perceber, troquei impressões sobre o tempo, comi o mesmo da minha colega, fiz-me desentendida, esforcei-me por ouvir uma amiga, despedi-me e não lhe disse que não, mas a estalar por dentro.

Avesso

Amanhã, se estiver sol, coloco cinco pessoas ao avesso na corda lá de casa. Só cinco. Não dá para mais, de certeza.

Não contarás

Guardei para mim. Não lhe contei que tinha passado o início da noite com o meu novo amigo. Será que fiz bem? "Será que sou eu?", como dizia a outra.Tirei o bilhete de identidade da carteira e confirmei: Já não sou aquela pessoa. Por fora: cortei o cabelo, comecei a borratar um pouco os olhos bem no cantinho de fora, consegui livrar-me das borbulhas. Por dentro: estou mais líquida, menos inquieta, mais fútil, menos obsessiva, mais extravagante.

quarta-feira, 14 de março de 2007

Cara de pão

Quanto mais ando, mais me apetece andar. É viciante. Encontrar o padeiro de bicicleta montada com cestos pelo caminho é sinal de um bom dia. A sua cara de pão, pálida e robusta, agrada-me. Sinto logo à distância o perfume do pão fresquinho. Esse, sim, seria o meu perfume de eleição. Os outros são de toda a gente. No outro dia, meti-me com ele, falei-lhe, e descobri que ele é bem disposto. Muito animado. Blá, blá, para aqui; blá, blá, para acolá, pois então. Peça rara na cidade, portanto. Atravessei a rua com um pensamento a atravessar-me a garganta. Sinto falta dos homens do pão.

sms interminável

Ele convidou-me sem mais nem menos. Eu preferia que tivesse sido outro a fazê-lo. A mensagem escrita falava em passear na Gulbenkian. Mas recusei. Ainda estava a cozinhar uma chatice relacionada com trabalho na minha cabeça e preferi não fazer o esforço de ter de falar, conversar sem dizer nada de jeito. Nesse dia, a sms repetiu-se por três vezes. Vai não vai, "tlin" no telemóvel e mais uma sms. Exactamente a mesma. Não liguei. No dia seguinte, na segunda-feira, acordei com a mesma sms. Foi a minha sobremesa do pequeno-almoço. Não, não podia ser um engano humano. Liguei para a operadora. "Erro do sistema, não temos outra explicação. Desligue e volte a ligar". Assim fiz. Depois de almoço, nova mensagem. A mesma. Com o novo telefonema outra voz sedutora pró-pirosa: "Talvez seja um virús no telefone do seu amigo. Mas, o telefone não está no nome dele, mas de uma senhora. Peça-lhe o número de contribuinte dela para podermos desligar a função". Assim fiz. Ele começou por não perceber, mas lá disse que sim. Não nomeou a proprietária do aparelho. Segundos depois, enviou o número de contribuinte. Telefonei de novo, indiquei o número e respirei de alívio. Quando estava a chegar ao trabalho, sucederam-se várias "tlints". De novo: "Vou à Gulbenkian, não queres aparecer?". Apaguei as três de enfiada. Liguei-lhe de forma resoluta e assertiva, coisa que não faria antes, e depois de um desfilar de disparates da mesma família, resolvemos encontrarmo-nos numa esquina próxima. Quando cheguei a casa, já depois das onze da noite, voltei a receber a mesma sms. Lá estava ela. Respondi então: "Ainda bem que não apareci no domingo".

terça-feira, 13 de março de 2007

Café da manhã

Estou com o coração apertadinho. Mas pronta para começar. Qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência.