domingo, 20 de maio de 2007

Sem alínea c

O que é que elas vêem no Tocha? Cristina começou a enumerar as razões: “Primeiro, lembra um certo romantismo já perdido no tempo, o que faz dele uma relíquia”. Mas é uma farsa, como dizia a Andreia. “Claro que sim, que é uma farsa”, respondeu rapidamente Cristina. Mas o seu ponto forte é esse. A dança e olhar certeiro fazem lembrar o tempo em que se engatava com regras conhecidas por todos. Não havia que enganar. Ou era amigo ou namorado, não existia alínea c. Voltando ao Tocha, a personagem cria ambiente por si só, ficando a vontade de participar no filme. É convidativo. A meia-luz, Tocha é o cromo que sempre vemos num homem quando resolve fazer qualquer coisa tradicional para nos agradar. Tocha veste-se de safado mas não convence. Percebe-se que se pode regenerar. O tipo que até pode acordar cedo para andar de bicicleta só para nos fazer companhia. Cristina disse outras coisas, mas só me lembro destas. É da ressaca.

Na horizontal

Tocha gostava delas altas. Mais altas do que ele. E de cintura fina, claro. Com ela vem um tronco mais magro e ossos próximos dos órgãos. Podia sentir o que se passava lá dentro. O estômago dela a triturar era música. Relaxava-o. Também quando o ritmo acelerava, sentia-se confiante para avançar. E era assim que, depois, Tocha se tornava grande, poderoso. Já Joaninha gostava de começar por enfiar os braços dentro das mangas da camisola dele. Saíram muitas vezes juntos enquanto ele a viu alta, elegante. Terminou quando ela lhe disse que tinha apenas um metro e 65 centímetros. Como pode ele ter andado tão equivocado? Na horizontal, ela parecia-lhe interminável: pernas longas, torneadas, ventre liso e braços finos. Na cama, ele encolhia-se. Ela esticava-se. Na cabeça dele, ela era tão grande. Tocha tinha um metro e 70.

sábado, 19 de maio de 2007

Bomba no peito

A primeira vez que Miguel lhe deu troco, o coração começou a bater mais do que era costume. Rita queria falar mais tempo com ele, estar mais próxima, tocar-lhe, mas tinha receio que ele percebesse que estava ali uma bomba no peito a querer saltar para fora. Punha a mão no decote para que não se visse as palpitações. Não lhe passou pela cabeça ir logo ao hospital. Na sua mente, só desfilava uma ideia: estar a menos de cinco metros dele. Se ficasse a seis, sentia frio. Aos dez, era como se caísse uma neve repentina, daquelas que nunca viu ao vivo. A primeira vez que Miguel lhe deu troco, Rita teve de ir às urgências. Os médicos fizeram-lhe exames e descobriram que ele tinha um problema no ritmo cardíaco. Nos primeiros dois meses de namoro, antes de cada encontro, a ansiedade obrigava-a a um comprimido específico para evitar batidas excessivas. Um dia, quis arriscar, não tomou nada e quando chegou ao pé dele teve de lhe dizer que precisava de ir à farmácia rapidamente. Três meses passados, de saídas, jantares, concertos, cinemas e muitos comprimidos, Rita melhorou. A coração habituou-se. Só quando o atraso descaía para os 20 minutos, as batidas aceleravam. Ele passou a viver com medo de não chegar a horas. Enquanto gostou dela, viveu com essa preocupação. Quando deixou de gostar dela, foi um certo alívio.

quarta-feira, 16 de maio de 2007

Zé Diogo

Clara sonhou com José Diogo Quintela. Que estava ansiosa pela chegada dele, pela sua presença. Ele não a cansava com nada do que dissesse. Via-se nos olhos dele quando o olhava. Era também uma coisa física. A perturbação efectava o sistema nervoso. As idas à casa da sanita multiplicaram-se. O nervoso miudinho só acalmava quando ele dizia piadas. E eram muito melhores do que as televisivas. Uma amiga - é incrível como elas entram nestes delírios da madrugada - foi dizer-lhe que ele a observava de uma forma muito terna. Ok. Era tudo o queria ouvir nesse momento. Aquilo bateu-lhe mais do que uma declaração de amor refinada feita pelo próprio. No dia seguinte, tentou responder de várias maneiras à pergunta: "Porque não sonhei eu com o Ricardo Araújo Pereira?"

domingo, 13 de maio de 2007

Barba

Encontrou-o vezes sem conta entre a esquina da avenida e o túnel. Contava com ele no percurso. Tinha uma ar amistoso, e uma barba rala como ela gostava. Refira-se que o Zé, o seu namorado, deixou de ter barba rala. Por causa de um problema de pele, ele tinha de se barbear todos os dias. Há dois anos e meio que não conhecia ninguém que lhe interessasse descobrir melhor ou ficar a curtir uma tarde de sol sem receio que a conversa esgotasse rapidamente. Bárbara resolveu segui-lo. Veio a saber que ele era informático, tinha uma namorada que trabalhava na Holanda, e era bom rapaz. A depiladora que trabalhava no seu prédio contou-lhe tudo. Quando a namorada vinha de dois em dois meses aproveitava para ir lá tirar o pelos e falavam muito. Até lhe trouxe um creme anti-rugas que ainda não tinha chegado a Portugal. Era um produto natural, claro. Na cabeça, cabem mil coisas, mil paixonetas e sinais a decifrar. Por vezes, há coisas que vão e vêm por passos de magia. O Zé voltou a ter a barba rala e ela deixou de reparar no Carlos. Pensando bem, nunca mais o viu. Bárbara não sabe se ele desapareceu, ou se foi ela que nunca mais reparou nele.

Miau miau

Cecília tinha uma vida sem graça, apesar das carteiras caras e dos sapatos espectaculares que faziam inveja às amigas. Na segunda-feira de manhã, a angústia era ainda maior. Crescia, crescia e quase a deixava sem ar logo depois do pequeno-almoço. A terapia: compras. Embora a tranquilidade fosse passageira, sempre ficava mais calma depois de passar pela loja. O empregado mais alto enchia-a de mimos e ela não era capaz de sair de lá de mãos a abanar. Pelo contrário, comprava sempre "umas coisinhas". Perguntou-lhe naquele dia: "Não veio ainda aquela carteira do anúncio da revista Miau, Miau?". O empregado não se conteve. Ela era a cliente conhecida por "miau, miau". Talvez estivesse na altura de a corrigir. Chamou-a um canto da loja e explicou-lhe que as peças "Miu Miu" estavam cada vez mais caras. Ela voltou ao erro: "Eu sei. A miau, miau anda pelas horas da morte. Mas alivia-me o stress". Justino resolveu ser frontal. Antes de lhe explicar tim por tim que não se dizia assim, mas assado. Ela antecipou-se: "Eu sei, mas estava à espera que alguém me corrigisse. Nunca ninguém o fez. Digo-o sempre na esperança que alguém o faça. Ninguém tem o coragem de o fazer. Pensam que sou uma tonta e eu desleixei-me, não provo outra coisa". Justino fez silêncio. Cecília: "Quando digo que adoro as malas trava, ninguém liga. Pensam que digo Prada. Mas miau, miau, é fantástico, não é?"

terça-feira, 1 de maio de 2007

Casal pingo doce

Todos os dias, durante 11 anos, Francisco deixou a côdea do pão para Clara comer. Tal como Clara deixava Francisco ser sempre o primeiro a tomar banho. Só depois de mais de uma década, em casa do irmão mais falador da família, se fizeram as revelações aparentemente insignificantes. Os presentes, seis membros da família do lado dela, pensavam, e comentavam sempre que havia oportunidade e o assunto vinha à baila, que Clara e Francisco formavam um casal modelo. Pareciam viver em harmonia. Ninguém se lembrava de os ver discutir. Abriu-se o poço das dúvidas quando descobriram que se pode viver de muitas maneiras uma relação tão longa. Ela comia miolo às escondidas e fora de casa. Ele achava uma chatice ser o primeiro a levantar-se para se despachar com o banho. Fazia-o para que ela ficasse no quentinho dos lençóis mais uns minutos. Quantas cedências se escondiam em função daquele amor que se queria preservar a qualquer custo? Habituaram-se a viver assim. Na cama, também.