quinta-feira, 30 de agosto de 2007

O teste

Aos 11 anos, fez o primeiro teste. Era uma menina pespineta, reguila, que atraía as atenções com facilidade. As outras eram mais giras, mas ela tinha outros encantos. O empregado mais responsável da empresa do pai não se cansava de a elogiar com termos pouco adequados para a sua idade. E Ana gostava. Sabia que ao encostar-se na secretária meio de lado, Damas, tinha o nome do jogo, lhe falaria de Dostoievski durante mais tempo. O livro que mais tarde este lhe ofereceu de Simone de Beauvoir foi durante muito tempo a sua Bíblia. Adiante, as cenas ao estilo Lolita nunca deram em nada de mais perverso. Fizeram-lhe foi bem. Ganhou jeito para lidar com os primeiros rapazes que quis tocar e colar a si. Entre as cenas que mais a divertia estava o teste. Durante anos, Ana fez o teste. No primeiro, vestiu a sua camisola mais foleira, penteou o cabelo como se visse mal e disse um grande disparate. "Se gostares de mim, pintas o meu nome no campo de futebol". Nunca pensou que Filipe o fizesse. Ele foi além disso. Escreveu-lhe uma carta que esta acabou por retalhar o mais possível e meter pela sanita abaixo, logo depois de lida. Na folha de quadradinhos do caderno de matemática, ele dizia que não sabia o que gostava dela, talvez tudo. Estas coisas não se esquecem. No dia seguinte, o muro dizia Ana+Filipe. Enfim, passaram-se anos e anos e lembrou-se desta história por ter dado conta que estava a fazer o teste dentro de um táxi. Para o próprio taxista e claro com uma intenção bastante diferente. Fez uma cara desalinhada, puxando um dos lábios mais para um lado, de modo a ficar o mais feia possível. Não dizem que é na proporção que reina a beleza! Daquela maneira, o taxista de ar ameaçador - exibia músculos que metiam medo - não a atacaria. Mais tarde, nessa mesma noite, foi ter com o Rui com hálito a alho e mostrou-lhe que afinal sempre tem pêlos nas pernas. Só que ele foi óptimo. Ana não previa aquilo. "Podemos brincar às depiladoras, é assim que se diz, não é?". Rui passou com "Satisfaz bem".

quarta-feira, 29 de agosto de 2007

Aspirador

Tinha que perguntar: porquê é que Joana tem tantos aspiradores lá em casa? O mais pequeno, parecido com uma máquina de barbear, foi comprado numa loja dos chineses na Holanda. A sério? Sim, é mesmo verdade. Daí até a conversa saltar para o tema das pessoas que sugam a energia dos outros, o melhor dos outros ou, por outro lado, que puxam o mais depressivo e sinistro dos outros demorou cinco minutos e 33 segundos. Joana contou que teve vários namorados que a deixavam cansada, sem vontade de tomar iniciativa. Quanto mais apaixonada mais lerda ficava. Com Rita, não. Sucedia que ficava mais humorada e viva do que era costume. Maria inspirava-se como se tivesse dominada pela força da imaginação. As ideias galopavam-lhe na cabeça. Inês não notava mudança alguma em si. O seu cu de pêra dizia alguma coisa da sua personalidade. Era uma pessoa descaída. As mudanças registavam-se na primeira fase da paixão, claro. Depois vinham os ajustes e com eles as atitudes mais mornas. Joana tinha os aspiradores lá em casa, segundo a própria, porque adorava guardar coisas para dentro. Era uma coleccionadora de pequenas peças. De molas de roupa a caixas de música pequenas. Quando se esquecia do significado do objecto este ia para o lixo. A presença dos aspiradores garantiam-lhe alguma tranquilidade, acabou por dizer, para compor a explicação pouco satisfatória. Rita contou, então, que os últimos três namorados que teve em cinco anos começaram a ter uma vida melhor depois de ela ter passado pela vida deles. Um deles estava lançado... Ela estava convencida que os tinha libertado de uma gaiola qualquer. Veio-se embora quando eles começaram a voar. Missão cumprida!

terça-feira, 28 de agosto de 2007

No autocarro

Josefina gostava dos solavancos. Quando os autocarros deslizarem pela estrada deixarão de dar o mesmo gozo. Entretinha a sua mente com pensamentos infantis do género quando a entrada de uma senhora desembaraçada veio dominar os acontecimentos. Falava alto e dizia à colega em brasileiro: "Para o ano vou pedir seis meses de férias. Sim, sim, um mês a que tenho direito e mais cinco para me fazer à vida. Claro que vou para o Brasil, aqui não se passa nada". A colega discreta, bem portuguesinha, de olhos sempre postos para baixo, porque é no chão que afunda as desgraças, respondeu: "Seis meses, não podes. Quando voltares não tens emprego". Não a deixou terminar, interrompeu-a para dizer: "Posso, posso, já fiz isto há dois anos e fez-me muito bem. O resto do tempo foi para arranjar namorado e fui ficando até me fartar". Ninguém se mexia no autocarro mas todos os passageiros estavam com os ouvidos alerta. "Ah", voltou à carga a brasileira, "é verdade, aqui também acontecem coisas, sabias que no piso de baixo o inquilino matou o senhorio. Eu quase que via tudo. Vi-o sair mais tarde. O desgraçado não tinha dinheiro para pagar a renda e descontrolou-se. Às vezes apetece mesmo matar o senhorio, não é?". A portuguesinha ficou espantada: "Não soube de nada, quando foi isso?". "Há 15 dias. O homem ainda não foi enterrado porque estão à espera que o filho venha da Austrália". Os passageiros do autocarro das 21 horas pensaram que poderiam estar diante de uma louca. Josefina teve pena que a senhora saísse logo na paragem seguinte. Ainda lhe faltavam mais seis.

domingo, 26 de agosto de 2007

Plano B

Houve uma altura em que vivia em função do plano B. Quis ir para Praga, mas foi passar uns dias a Barcelona, onde já esteve mais de meia-dúzia de vezes. Nunca fazia exactamente o que queria, optou por deixar-se levar como se fosse uma peça flutuante a descer o rio. Às vezes ia de lado, outras vezes até apanhava as pequenas ondas como se estivesse a fazer surf. Tentava fazer surf, divertir-se, mas eram instantes passageiros. Hoje não. O plano B estoirou para Carolina. Morreu-lhe o gato, bateu com o carro, a tia tem cancro e já não basta descer a Avenida Almirante Reis para ficar menos depressiva. A irmã está muito doente. Antes, a miséria e a diferença humana davam-lhe algum conforto. Afinal, por comparação, a sua vida era boa. Agora sim. Faz o exercício de ser ela a sugerir onde se vai tomar café com os amigos- deve-se começar com pequenas coisas -, a impor mudanças ao chefe, a pedir ao Nuno que a deixe ficar a ler o livro enquanto ele brinca com os sinais e outros mapas que ela tem estampados no corpo. Hoje já chorou duas vezes. As gotas são espessas e molharam o chão. Esteve 731 dias sem chorar. Sabe porque apontou a última vez. Bateu o seu recorde.

sábado, 25 de agosto de 2007

Palhaço

Ficou sozinha no bar de máscara nos olhos. Era Carnaval e os amigos estavam mais eufóricos do que era costume. No momento de decidir ir para outro sítio, formaram-se dois grupos e foi por causa disso que Felismina acabou por ficar sozinha. Os primeiros a sair pensaram que ela vinha a seguir. O segundo grupo partiu do princípio que ela já ia adiante. Foi assim que conheceu o Rui. Depois da troca de palavras com o então desconhecido, Felismina disse-lhe que tinha ficado ali sozinha e ele prontificou-se a levá-la ao outro bar onde estariam as amigas. Bem, enrolaram-se, não foram ter com ninguém mas um com o outro, "fizeram o amore" até ao nascer do sol numa casa com vista para o Tejo. Felismina não gosta de adormecer de dia e fê-lo parar assim que a claridade deu de si. Perderam bastantes calorias. A barba dele exfoliou a pele do queixo dela. Trocaram, depois, o que podiam em três semanas. Ao 21º dia, ele mandou-lhe uma mensagem escrita a dizer que estava confuso. Ela percebeu o que se estava a passar. Só nessa altura, com a ruptura, teve coragem de contar às amigas que havia uma faceta muito forte dele que lhe provocava pesadelos: ele era palhaço em part-time. Palhaço? Sim, à séria. Ela não tinha nada contra palhaços e por quem faz de palhaço, mas, sem saber muito bem porquê, estes metiam-lhe medo, como se escondessem sempre uma tragédia que estaria quase a chegar. Não lhe foi difícil esquecê-lo. O facto de os pesadelos acabarem, ajudou.

sexta-feira, 24 de agosto de 2007

Sexto sentido

São eles que o têm. São eles que têm um sexto sentido apurado. "Não pode ser?". "Pode, pode", respondeu a Samantha do grupo. O assunto era tão corriqueiro quanto divertido: gajos. Deitava-se conversa fora quando Maria deixou a ideia: "Os gajos têm um sexto sentido". Baseou-se em factos para defender a tese. Contou que sempre que alguém a interessava, surgia de novo o Zé. No outro dia (foi tão engraçado) deu por si a responder de enfiada a um e a outro, por msn ao Zé e por mail ao Manel. Uma boa meia-hora, não, bem mais do que isso, foi assim passada. Dois jogos ao mesmo tempo. O tempo fugiu. No fim, resolveu apagar todas as mensagens do Zé e desistir do convite para jantar. Na conversa do ninho de amigas, outras teses se impuseram: "É que hoje em dia as mulheres acham sempre que podem ter um companheiro melhor", disse ainda a Samantha inspirada. Eles ganharam o sexto sentido (não estou a ver o meu pai a tê-lo). Elas tornaram-se exigentes. Maria acabou por ir jantar com o Manel.

Biquini

"Acabou de ir para o lixo o meu biquini preferido". Joana telefonou à amiga para lhe contar a novidade. No dia em que o comprou não lhe assentou na perfeição, mas depois de duas idas à praia tinha ganho o estatuto de objecto-pele. São poucos os que ficam nessa sua prateleira mental. Tem uma camisola gasta que ainda veste em casa nos dias em que sente saudades. Voltando ao biquini, este apanhou umas manchas amarelas na piscina. Lavou-o, lavou-o, até se aventurou a passá-lo por lixívia, mas não notou diferença. O fim do biquini coincidiu com a morte de mais uma história amorosa. Como dizia o outro, vão-se os anéis e ficam-se os dedos. Os anéis são as histórias. Depois de o telefonema terminar, apeteceu-lhe ligar ao Zé. O Zé também estava para lhe ligar. Encontraram-se. Contou-lhe a história de vida do biquini. Ele gostou muito. Adorou os pormenores. Disse, depois, que tinha de ir à Fnac para comprar um CD a um amigo e que voltava logo. Mas não voltou, nem mandou sms. Eclipsou-se. No dia seguinte, foi ao seu encontro. Joana não estava a acreditar que o Miguel estava do outro lado da passadeira com uma prenda na mão... Era um fato-de-banho.

Ao que chegámos

Carolina levantou-se mais cedo do que era costume. Não conseguia abrir o olho da esquerda na totalidade. Estava colado ao sono. O da direita bastou-lhe para se orientar minimamente. Enfiou a escova de dentes na boca, esfregou os dentes com as forças que tinha. Eram poucas. Tinha prometido que ia à feira nesse dia e não podia falhar. Estava um dia rijo de Verão e valia a pena ver com era. E foi muito bom. Enquanto descia no carro velho entre os montes, através da estrada magra em largura, foram passando pela sua cabeça pensamentos pouco organizados. A sua vida estava estreita como aquele caminho que só dava para um carro. Era assim que se via: sem bermas por onde poder fugir. Lá em baixo, no meio do largo local onde se situava a feira, várias coisas aconteceram. Quem mais lhe chamou a atenção foram os ciganos: o Acácio que conhecia desde tempos da escola e que nunca mais vira; um miúdo de três anos arrebitado e a avó de preto quase de burka. Ela tentava vender a todo o custo as camisas aos quadrados dizendo: "Não tenha vergonha de comprar barato". Pelos vistos, tinham. As camisas não tinham saída. O miúdo não parou quieto o tempo todo. Quando um carro de mão tocou na tenda da sua família, barafustou como gente grande sem travão social: "Ai se te apanhasse em Espanha, nem sabes o que te fazia, limpava-te logo". Os pais e os avós repreenderam-no mas de forma pouca assertiva. Acharam graça como toda a gente que assistia. O melhor momento estava para vir. Quando passou um burro de pêlo escuro, castanho brilhante, o puto reagiu logo: "Avó, avó, um burro, um burro!". A senhora de vestes pretas levantou as mãos para o alto e gritou com voz de quem fumou (não deve ter fumado, mas o seu timbre dava sinais disso): "Ao que chegámos, ao que chegámos, até um cigano fica surpreendido por ver um burro".

sábado, 11 de agosto de 2007

Bendito roubo

Mariana roubou o namorada à Marta e em boa hora o fez. Com a Marta o Zé era um rapaz pouco dedicado. Com Mariana, o Zé era outro: atento, perspicaz. Será que as pessoas mudam conforme quem têm pela frente? Este exemplo diz que sim. O Zé nunca se separaria da Marta se não fosse a Mariana. Marta não o mandaria embora por achar que gostava dele. Afinal, o motivo de não se interessar por mais ninguém só podia ser esse, não? Não era. Mariana reparou no Zé quando ele se deitou em cima da Marta sem lhe tocar. Os braços firmes seguraram o resto do corpo, deixando-o em suspenso. Era franzino mas elegante. Como podia a Marta vê-lo como desajeitado! Contava sobre ele as histórias mais absurdas. Na noite em que a Marta disse à Mariana que não tinha grande gozo em dormir com o Zé, Mariana foi à sua procura e roubou-o. Tirou-lhe os 20 euros que ele tinha na carteira e quando foram ao multibanco buscar mais dinheiro, encostou-se a ele, dando o arranque a outra história. Mariana ainda hoje guarda na caixa dos segredos esses vinte euros. Quando ele for embora, devolve-lhe o dinheiro para que possa ir de táxi para casa. Será que em 2020 ainda vai dar para isso?