quarta-feira, 24 de outubro de 2007

Fora do sítio

Correu mal o dia. A colega de trabalho mandou uma mensagem bem cedo a dizer que o namorado estava a ser operado à cabeça, por causa de uma hemorragia. Parecia que um osso do pescoço tinha crescido demais ou que estava fora do sítio, mas afinal era mais do que isso. E agora não podia dizer-lhe que tudo ia correr bem, pois da última vez que o fez a sua previsão falhou. Não se pode errar duas vezes em assuntos que metem vida e morte. Sentiu um vómito a formar-se dentro dela. A digestão parou. O seu director tratou-a bem demais antes de lhe pedir para ficar 10 horas fechada numa conferência sobre temáticas de economia. A nova estagiária não percebeu ainda que não trabalha em função dela mas das muitas solicitações que lhe exigem respostas rápidas. A sua amiga mais frágil liga-lhe mas depois não fala do que a preocupa. Só diz futilidades. Rouba-lhe tempo. O namorado é um chato. Até no msn quer saber isto e aquilo. Nunca sabe onde está nada na cozinha. Mariana funciona como um livro de instruções de culinária à distância. Ele nunca aprende nada e anda muito palavroso ultimamente. Como Mariana passa o dia a falar com pessoas, chega à noite a querer que não lhe digam nada. Se só a olharem e como deve ser, de forma a que entenda, tanto melhor. Mariana resolveu não ir para casa. Enfiou-se na primeira tasca que encontrou com gente de dentes estragados. Falava-se alto. Pediu um copo de vinho da casa. Quando deu uma trinca num pastel de bacalhau encontrou um brinde. "Ai, se a ASAE vem a este estabelecimento, estão lixados", pensou. Era um anel. Uma aliança de metal branco. Tinha gravado na parte de dentro: Mariana, 25/10/2003. Como tinha o seu nome, guardou-a.

terça-feira, 23 de outubro de 2007

Um café bem quente

Quando se é muito amado durante a infância e adolescência torna-se difícil ficar satisfeito com a meia-dose que pode vir com os amores seguintes. O contrário também sucede. E é igualmente mau. A Josefa não sabia o que era o amor incondicional. Sempre se contentou com pouco. Habituou-se a ficar contente com um cafezinho quente pela manhã, com o piropo do senhor da mercearia - acho que só continuava a ir lá por causa disso - com o roncar do Salvador e as cócegas que este lhe fazia na cama. Se ressonava era porque dormia tranquilamente na sua companhia. Podia ser um bom sinal. Sem dramas. Se ele fazia o jantar, Josefa apontava que lhe estava a dever uma massagem aplicada de hora e meia. Daquelas que até deixam os músculos dos braços a doer de quem a faz. Achou que ele gostava o suficiente dela para avançarem para um filho. Mas ele surpreendeu-a pedindo-lhe que se desfizesse dele. Disse-lhe que ela não percebia nada de amor e que não era sensato darem esse passo. Josefa propôs então que se separassem. Ele não quis. Queria estar com ela, mas não queria esse tipo de ligação que alguns casais têm. Não queria nada que se parecesse com um final feliz. Odiava palmas e finais felizes. Saía sempre antes da sessão do cinema terminar.

segunda-feira, 15 de outubro de 2007

Outra face da lua

Encontraram-se de novo na outra face da lua. Há três anos atrás, na rua do Norte, agora em plena baixa, onde as ruas desaguam para mais um pequeno pátio com calçada portuguesa. Francisco trazia os phones colocados. Só os tirou quando se esgueirou para a cumprimentar. Ela trazia um livro cor-de-rosa entre mãos que de depressa arrumou na mala para não parecer que o exibia. Era o livro "Rei", de Zui Zink e ilustrações de António Jorge Gonçalves, que conta uma viagem ao Japão, resumiu Alice, para passar adiante. De cabelo desalinhado, Francisco ainda ficava mais interessante. Era como se o exterior selvagem espelhasse as ideias poderosas que ia reunindo lá dentro. Alice contou-lhe que a árvore onde se encostavam nas férias já só tinha um tronco. Os outros dois foram cortados. Cresceu sozinha num baldio, não tinha sido plantada por ninguém, e foi-se erguendo com três troncos, igualmente largos e curvados que se pareciam a bancos. Os três amigos sentavam-se ali no Natal e na Páscoa para fazer o ponto da situação das suas vidas. Alice combinou o chá com o Francisco porque queria saber se ele tinha levado um safanão que justificasse a extracção de mais um tronco. Na altura em que o primeiro foi cortado, Júlia tinha anunciado que estava grávida. Francisco não lhe respondeu logo. Desviou a conversa. Quando se virou de frente para ela de forma a encará-la, disse-lhe que não era nada disso. Não era o tronco dele certamente. "Ainda acreditas nessas coisas?". Nenhum dos dois acreditava. Mas Alice queria confirmar que não era assim. Francisco disse-lhe que ela ia gostar de saber. Foi o próprio quem o cortou num dia de raiva. Detestava violência, armas, mas tinha de fazer alguma coisa insane naquele dia injusto. Pegou num machado e deu-lhe com toda a sua força. Ela chorou sem dar conta disso. Ficou cheia de frio a seguir. Ele calou-se. E corrigiu: "Não foi nada disso, vão construir lá uma casa, já têm licença camarária e tudo e quiseram retirar a árvore dali". Prosseguiu: "E sabes o que aconteceu? Só conseguiram tirar aquele ramo. Vão pedir uma grua para escavarem o terceiro tronco e as raízes. Foi um trabalho difícil. Quanto a mim, fica descansada, ainda moro em casa dos meus pais. Ou melhor, vou vivendo na casa da namorada e quando ela corre comigo volto para a minha mãe". Alice perguntou-lhe se sabia quando iam retirar a árvore. Francisco respondeu-lhe com sentido prático: "Há coisas que é melhor não saber".

quinta-feira, 11 de outubro de 2007

Persianas

Durante anos criou vários mundos paralelos na sua cabeça. Um deles tinha países e num desses países as pessoas eram transparentes. Havia uma ou outra excepção. Há sempre. Quando as pessoas faziam a digestão fechavam as cortinas, por exemplo. A linguagem seguia o mesmo registo. E o resultado era avassalador. Tornava-se contagiante ouvir o mais sórdido e o mais apaixonante por um motivo pequenino. Dizia-se tudo, verbalizava-se cada inquietação e por isso não existiam problemas de memória. Não se guardavam mágoas. As dúvidas disparavam na ocasião e não cresciam. As declarações de amor tinham muitas partes desagradáveis lá pelo meio. Quase não se faziam conversas de circunstância. O mais parecido que detectou com isso foi: "As tuas persianas estão a ficar mais fechadas". Ao que ela respondeu: "Estou a pensar no Rui, desculpa!"

segunda-feira, 8 de outubro de 2007

Não digas adeus

"Ai, amiga, amiga, estou com uma mama de fora. Será que alguém me viu da janela?". Não era a primeira vez que acontecia. Rosita era assim. Devia ter um ombro curto para as alças do soutien e volta e meia elas deslizavam por ali abaixo. Ria-se muito ao telefone enquanto contava à Carolina. "Ai, não estás a acreditar, está um homem do outro lado a dizer adeus, o que faço? Respondo?". Carolina disse que não. Se ele viu o peito de Rosita, era melhor que ela não lhe desse troco. Podia ser um tarado. Mas na cabeça de Rosita, não havia maldade. "Também se viu", disse, " talvez o tenha animado, há quanto tempo não verá ele um peito empinado?", continuou ela. Carolina queria contar-lhe que a colega mais insuportável do trabalho tinha arranjado um namorado, mas ela interrompia-a. Não a deixava terminar. Rosita lembrou que uma vez estava a sair da casa de banho do café Baliza e que só reparou que estava destapada depois de alguém lhe dizer: "Golo, golo, ah descarada!". Tinham as duas tido um dia de trabalho para esquecer e não conseguiam parar a galhofa. Finalmente, Carolina consegui contar que o namorado da mais rude e atabalhoada colega era adorável, adoravelmente gay. "O quê?". "Isso que acabaste de ouvir". Será que parece e não é? Também o Luís parecia, ainda que pouco, e afinal não era. Carolina foi burra por se ter deixado levar pela desconfiança. Transformou logo em amizade o que tinha potencial para ser uma relação mais envolvente. Verdadeiramente, não lhes interessava muito se o namorado da irritante era ou não gay. Naquele momento só não podiam perder o ritmo da conversa. Rosita ainda disse: "Na próxima quarta-feira, quando nos encontrarmos no Funicular, mostro-lhe uma mama. Dependendo da sua reacção, veremos!".

domingo, 7 de outubro de 2007

Escadas rolantes

Dois casos de sucesso amoroso começaram em palcos pouco finos. Claro que para os envolvidos não foi visto dessa maneira. A prática também nos diz que qualquer arraial pode ser um baile sofisticado quando os sujeitos sentem a inclinação. Vejamos: Rui andava tão desiludido que resolveu ir ao almoço de Natal da empresa. Bem, foi lá, entre cortesias e frases de ocasião que reparou na Luísa. Naquele ambiente inóspito a vários níveis - até o comportamento das pessoas era mecânico, balofo - sobressaiu alguém. Foi assim que a viu pela primeira vez. Com Raquel, a inclinação nasceu enquanto ele descia as escadas rolantes do Coimbra Shopping. Havia barulho desgradável, frenesim, música de elevador, gente a encher os degraus. Num dos degraus, viu um rapaz que já tinha visto não sabia a onde. Sorriram a medo por não terem razão para se cumprimentarem. Descobriram mais tarde que nunca se tinham visto antes. Serão os cenários importantes para o primeiro contacto? Para eles, não foi. Depois, perguntei como foi o primeiro beijo. As respostas foram igualmente inesperadas: "Foi desajeitado", disse a Raquel. "Não me lembro bem, já demos tantos depois disso", saiu da boca do Rui.

Noite branca

Esteve aflita toda a semana. O director parecia que estava a implicar com ela. Sonhou com ele duas vezes: na terça e quinta-feira. Numa delas, ele pedia-lhe que corresse até que as veias saltassem das mãos. Josefa estava cansada. Sabia disso. Mas tinha poucas alternativas. Já não podia tirar férias: gastou-as com a doença do avô. Nem a hipótese de uma viagem a animava. Na sexta-feira bebeu vodka antes de sair para a rua para tentar rasgar com o que era a sua vida: 11, 12 horas de trabalho intenso; fazer jantares rápidos para o Alexandre (porque lhe deu para dizer que era boa cozinheira e deixou instituir que a cozinha era a sua área da acção?) ; ter encontros com a mãe na tentativa de a ajudar na recuperação psiquiátrica. Não parou de beber bebidas brancas toda a noite. Há dois anos que não o fazia. Evitava-o. Com o Alexandre não era preciso grandes estímulos. Ele sabia sempre como lhe dar a volta. Desde o dia em que lhe disse que por ela emagrecia, ela deixou-o ficar. Dia após dia. Emagreceu, sim, deixou crescer a barba e tornou-se mais pontual. Naquele noite, abusou do vodka. Josefa não conseguia parar de dançar. Lembrou-se de "Os cavalos também se abatem". Falou com muita gente que mal conhecia. Deitou conversa fora por três meses, pelo menos! Alexandre resolveu ficar um pouco à parte. E Josefa resolveu ir a um "after" (hours). Alexandre despediu-se sem lhe tocar. Ela deixou-o ir. No regresso a casa, ainda fervilhava em energia mental, embora o corpo já não lhe respondesse. Quando abriu a porta do quarto, não viu o Alexandre. Passaram-lhe mil coisas pela cabeça. Ficou à toa, chorou. Talvez as coisas já não andassem afinadas. Andou distraída. Seria o princípio do fim? O pior é sempre o princípio do fim. Dormiu como se morresse. No outro dia, acordou com o Alexandre a seu lado. Afinal, ele não foi dormir para casa da vizinha, sua amiga. Esteve a dormir no sofá enquanto ela inventava problemas.

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

Que droga!

"Deixei-me de substâncias, estou viciada na lucidez". Foi por causa de uma frase destas que Mariana começou a prestar atenção à conversa que se passava ao lado, na mesa vizinha do café. A rapariga de rastas no cabelo e camisola lacoste prometia mais revelações fora do comum. De voz firme, contava que estava farta das distracções: de se deixar levar pelos pensamentos que lhe davam um gozo que não ia além dos 20 minutos. Chegava a pensar que conseguia o que mais queria fazendo exercícios de concentração, fixando, por exemplo, o olhar no ponto mais alto de um prédio ou então seguindo o percurso de um avião que rasga os céus. Se o céu estava zul forte e o avião deixava um rasto recto e bem desenhado, acreditava que o dia lhe traria brindes. Durante anos, pediu aos aviões que lhe trouxessem isto daqui e acolá. Como se com eles, chegassem as poções milagrosas. Era tudo para entreter a mente. Tudo valia desde que entretesse. Não conseguiu aguentar o Rui muito tempo por ele ser muito materialista. Ele olhava para o que rodeava com régua e esquadro, já para não falar nos números que atribuía a tudo. A ela deu-lhe 19, vá lá. Mas às vezes dizia-lhe que ela estava um sete. O cinco era reservado para os dias da tensão pré-menstrual. Mariana ouvia o mais atentamente possível. Estava vento e tinha de adivinhar o resto de algumas frases. A rapariga de rastas no cabelo e camisola lacoste contava à amiga que estava agora viciada na lucidez. Isso é que era contra corrente! "Vejo os outros mais perto de mim, apercebo-me melhor como são, do que têm falta", disse. "Eu? Eu também vejo claramente o que preciso, como se o corpo me fosse dizendo. O que faço é escutá-lo".

Mulher assassina

José pensava que ela era amiga da Renata e esta partiu do princípio que ela estava com ele. De olhos azuis claros, cabelo liso e comprido, mexia-se como um gato, ou melhor, movimentava-se a lembrar uma sedutora de outra época, já desaquada nos filmes contemporâneos. Seria kitsch a miúda? Inclinava a cabeça para um lado e suavemente para outro, sem seguir o ritmo. Estava fora dele. E lá se ia encostando. À primeira vista parecia mais do que amiga do José. Olhava-o com um jeito de quem se fazia a ele sem disfarce. Observava-o um pouco de lado. Molhava os lábios com frequência. Tocava-lhe aqui e ali, como se fosse levemente empurrada pela dança dos outros. Enquanto isso, todos se mexiam animadamente. José já não estava a perceber. A amiga da prima seria uma atiradiça! Perguntou a Renata quem era. A prima devolveu-lhe a pergunta: Não é tua amiga? Não, não era conhecida de alguém ali do grupo, muito menos amiga, mas comportava-se como fosse. De segredinho em segredinho, os primos e amigos dos primos inventaram possibilidades. Ninguém sabia quem ela era. Estaria ali uma rapariga completamente sozinha a engatar o José como se o conhecesse de outra encarnação. O José foi cauteloso. Primeiro, só se ria. Depois, acedeu responder-lhe quando ela lhe falou. Rui ainda achava que ela tinha de conhecer alguém dali, se não era da malta, amigo de amigo da malta. Quando chegou a hora da retirada - eram quatro da manhã - continuavam as mesmas questões. Mas José ficou. Ficou a falar com ela. Os outros foram-se embora sem saber quem era a desconhecida. No dia seguinte, o Zé mandou um mail a desfazer o enigma. Afinal, a mulher assassina, como lhe chamou o Rui, era a melhor amiga da sua namorada, com quem o Zé começou a partilhar casa há coisa de uma semana. Como é que não se lembrava dela? Muito simples, ainda não a tinha visto. Ela conhecia-o bem das histórias, fotografias e vídeos das últimas férias. Tinha vindo da Holanda há 72 horas.