terça-feira, 22 de abril de 2008

Um barco

Rui ofereceu-me um barco minúsculo que passei a usar como amuleto. Quando nos conhecemos, estávamos fartos da vida que tínhamos, o que me levou a pensar que a faísca teria sido motivada pela circunstância. Um dia falei-lhe que gostava de ter um barco no Tejo. Ele disse-me que tinha um na banheira que o acompanhava desde pequeno. Quando tinha 5 anos, sonhava ir com ele a África levar gelatina aos meninos que passavam fome. Aos 15, imaginava o barco a chegar ao Japão, onde iria comprar o último modelo de computador Toshiba. Aos 18, estar lá em festa com todas as miúdas que lhe agradavam nessa altura, incluindo a vizinha do terceiro esquerdo que tinha uma voz de rádio. Aos 25, sonhava ir para Nova Iorque passar uma temporada sem horários. Aos 35, conseguir remar contra a maré para deixar aquele emprego. Agora, aos 36, criava tempestades no banho de imersão para ver como a embarcação se safava. Enfim, julgo que o conquistei quando lhe disse que ele me fazia sentir em viagem. Ele não tinha essa noção, mas comigo tinha esse efeito. "Mas viagem como? Para onde?", perguntou, naquela tarde em que estavam os dois a aturar uma ressaca. Nunca antes tinha pensado nisso. Mas que me provocava aquela sensação de gozo própria da viagem, ai provocava. Bem, talvez fosse a sua imaginação. Talvez a sua imaginação gostasse da minha.

domingo, 13 de abril de 2008

Adivinha lá

Conhecer ou não conhecer, eis a questão. Mas se nem eu me conheço. Criei uma imagem mais ou menos ajustada do que sou com o que acho que transparece, mas, às vezes, parece que não sou nada disso. Sou tão igual a tanta gente. Apetece-me viver com menos palavras. Ditas, sim, claro. Preferia que nos percebessemos melhor por nos olharmos, pela captação de uma energia, uma força. Não gosto nada de pessoas pouco expressivas. Estamos todos um bocado com os médicos do século XXI que são tão irritantes. Nada sabem, até verem resultados de exames. Antes não se fazia nada disso, e eles adivinhavam. Antes é que era bom ir à consulta. Agora é um atrofio. Deixam-te à nora: pode ser tudo, de uma virose (explicação mais usual) a cancro. Alice desabafava assim com Rita, por estar desorientada. O que não estava a funcionar bem com o Francisco? Ele queria conhecê-la, estava sempre a arranjar maneira de saber mais qualquer coisa. E para ela isso era um cansaço. Tinha ali um inspector. Alice preferia um olhar de agrado, magnético, que a levasse a outra galáctica, que lhe provocasse um reacção física não comandada. Preferia que ele alinhasse numa vida solta. Rui não era assim. Rui revelou-se o monstro das certezas.

terça-feira, 8 de abril de 2008

Banco da frente

Tinha-se tornado um hábito. À frente ia sempre a cadela, por causa do pêlo que tinha deixado das viagens anteriores. No banco de trás do carro, ia a esposa. Foi assim durante 12 anos. Quem os via passar estranhava, mas eles viam o quadro com normalidade. Aos poucos, Tony começou a falar mais com a cadela do que com a Alzira. Ela estava noutra. Foi-se dedicando mais às amigas e parecia divertir-se com elas. Com ele, já nem os solavancos em cima da máquina de lavar a roupa eram por aí além. O que era excitante há uns anos, deixou de o ser. A máquina foi-se tornando mais lenta e barulhenta, deixando de dar o compasso certo. Ele distraia-se pelo meio e chegava a falar das formigas numa pausa curta para respirar. Enfim, as paredes ganharam humidade e ele deixou de deslizar tão bem dentro dela. Com a cadela, a relação foi ganhando pontos. Como ela não lhe respondia nem o punha em causa, ele contava-lhe tudo, até os sonhos mais tolos e os medos mais pequeninos. Nas alturas de tomar decisões, pedia-lhe para ela ladrar. Se o fazia com pausas era por que não. Se não parava e era uniforme no latir, a resposta era afirmativa. Hoje Tony está separado de Zulmira e com menos 20 quilos. Perdeu a barriga e está outra pessoa. Quando a decisão foi tomada, a Jolie latiu durante 10 minutos sem parar. Pois é: Zulmira foi à vida e a cadela ficou. O lugar da frente continua a ser seu.

Almofada

Casa e cama são fundamentais. Lembrou-se do que a mãe lhe dizia: "Sempre na horizontal". Basicamente era isso. Sempre teve uma predilecção especial por estar deitada, mas não era propriamente para dormir. Bastava ter os pés fora do chão. O gosto foi crescendo de tal forma, que transformou o escritório numa cama gigante. Parecia um recreio de criança, mas com ar de escritório confortável. Quem o descobria, quando ia lá casa, desconfiava logo de comportamentos fetichistas. Mas não era nada disso. Era ali que descontraía e só por um vez, quase por engano, mais exactamente por lapso, é que deixou alguém encolher-se ao seu lado em cima do colchão. Entre computadores, mesas de som e uma pilha de discos vinil gastos pelo tempo, embora fossem compras recentes, arranjou espaço para mais uma almofada. Dormiram sob vigília, na expectativa de um gesto ligeiramente mais intrometido. Ele não tomou a iniciativa e ela deu graças no dia seguinte por ter sido simplesmente assim. Matias disse-lhe de manhã: "O dia vai ser mau, a noite foi tão tranquila". Choveu muito nessa manhã.

segunda-feira, 7 de abril de 2008

O meu bairro

Abri a janela e vi-me lá fora no meu bairro. A andar por ali e acolá, entre a costureira e a lavandaria, a correr para apanhar o comboio, e deixar o cão encostar-se ao poste para fazer o seu xixi. Que cheiro! A tropeçar na pedra solta das obras. A levar com o sinal "proibido estacionar" na testa. Ele sempre esteve ali, eu é que fui contra ele. Com passo largo para voltar para o sofá confortável. Para o quentinho, para o pijama, para o silêncio quebrado apenas pelo som da televisão da vizinha surda. Era uma rapariga com energia, imparável. Com as mãos na mala procurava a chave. Não a encontrei. Onde teria caído? A bolacha estava dura! Não a podia ter comido. Era demasiado grande. Ficaria engasgada. Ups, claro, deixei-a com o Rui. Ele quis ir tirar uns anúncios de empregos da net. Esqueci-me. Fui-me embora do bairro sem entrar em casa. Por causa dele, vou apanhar frio. Ok: vou fechar a janela.

Um bilhete

"Se o que eu quero não me dás, se o que te dou não chega, ou voltamos ao princípio, ou esquecemos o que queremos". Foi com um bilhete deixado no carro que ele resumiu o que se passava. Francisco sofria, afinal. Alice não sabia. Achava que disfarçava o seu mal estar até um dia. Vamos lá arrastar isto até ao trambolhão, disse à amiga Josefa, a quem desabafa estas coisas. Ela percebia-a melhor do que qualquer outra pessoa. Só ela, pelo menos, se concentrava realmente no que ela dizia. Parecia às vezes um exercício para decifrar incoerências. Alice era esperta, rápida de raciocínio, mas tinha um defeito que é muito vulgar: ver sempre o que se passa apenas à sua maneira. Outra versão da história parecia-lhe um disparate. Era teimosa. E vivia inquieta por fazer sempre o mesmo caminho, apesar de nada fazer para o alterar. Josefa fez-lhe ver que ela não mudava de corte por ter medo de descobrir outra pessoa até aí escondida entre cabelos longos e lisos. Que ela gostava de se fazer desentendida para se servir do conhecimento que tinha como uma arma. Que era muito orgulhosa, sim, mesmo muito. Jamais diria ao avô que não tinha aquele namorado fantástico que a estava sempre a gabar. O avô achava que não poderia ser de outra maneira. De tanto inventar à volta do namorado que ela ou o avô queriam ter, Francisco tornou-se cada vez mais uma metáfora.