domingo, 25 de janeiro de 2009

Uma prenda

Eu gosto mesmo muito dele. E não é por ele ser seguro. É por corar e ficar cabisbaixo logo que deixa de falar comigo. Eu sei que o transporto para outra dimensão. Ele comigo, revela-se humorado e aventureiro. Contou-me que colecciona histórias para me contar. Eu dou-lhe pontos. E as mais votadas são lidas ao domingo de manhã. Como se fossem a nossa missa conjugal. Com ele, não tenho medo de ser despedida ou de ter cancro da mama. Quando estou com ele, estou sempre entretida. Apetece-me fazer bolos e manter aquele cheiro enquanto nos enrolamos na cama. Passámos o fim de semana em casa e foi como se tivessemos feito uma viagem. Mesmo aquela sensação que se tem do regresso foi igual. Trazia uma compensação qualquer comigo. Uma prenda para guardar muito bem. Quando me deitei sozinha, na minha cama, virei-me para a janela que fica para o lado da casa dele e deixei-me adormecer assim. Mas, atenção, as histórias que me conta são tudo menos leves, como nós. São estranhas, entroncadas e dramáticas. Mas enfim, no Carnaval, vestimo-nos de pássaros.

A mulher invisível

Tinha uma nódoa na camisola. Foi tirá-la. Mas sobrou a vontade irresistível de voltar a vesti-la. Como se fosse a peça mais certa para aquele dia chuvoso. Lavou-a, secou-a, passou-a. Noutros tempos, não teria importância. Enquanto Felismina contava o episódio insignificante, Alice ia somando pontos na sua preocupação. Felismina chegou a dizer-lhe que deixou de ir à praia por ter começado a implicar com o mar. Faz muito barulho, não sosseja, justificou. Está a mudar a Felismina, pensou. Todos lhe sugaram energia e boa vontade e ela foi-se apagando aos olhos de toda a gente. Lembrou-se de um dia a sua avó lhe falar de uma tia solteira que tinha esses poderes: estava sem se dar conta dela. Viveu assim muitos anos, até fugir para o Brasil. Alice ia juntando explicações como se de uma demonstração power point se tratasse. Deixou-a falar, falar. Por fim, disse à amiga: "Se és invisível, tira ao menos algum partido disso, por favor! Descansa."

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Intervalos

Pedro gosta mais de mim nos intervalos das relações que vai tendo e fui-me habituando a isso. Se me convida para um café ao sábado, já sei do que tratará a nossa conversa. Mais uma namorada, amiga ou lá o que seja que está a deixar de lhe dar pica. Curiosamente, nunca há uma razão sexual para o afastamento, o que sempre me fez crer que ele não seria muito exigente nessa área. Pelo contrário, o que mais o arrelia, por regra, são as conversas chatas. "Pode-se não falar de nada novo, não é isso", insiste em explicar, mas há coisas que o incomodam. Como por exemplo? Gastar meia hora a falar da colega de trabalho que teve um filho. Como conversa chata puxa conversa chata, os diálogos vão se tornando monólogos e ele começa a desinteressar-se. Um dia contou-me que a Joana se tinha transfigurado à sua frente enquanto falava, falava. De repente, viu um monstro na sua cara. Os olhos desapareceram e no lugar do nariz estava uma tromba. Naquele dia, a história tinha uma nova coordenada: "A Elsa traz brinde". "What?", perguntei?. Tem um filho de três anos e não me apetece andar com o filho.

Olho azul

Abri-a bem olho e quanto mais o fazia, mas crescia o seu espanto. O espelho dizia-lhe que tinha um olho azul. Apenas um olho azul. O outro estava igual ao que sempre foi: castanho cor de castanha. Demorou alguns minutos até conseguir encontrar uma explicação. Afinal, no dia anterior tinha dois olhos normais. Tinha dormido sozinha, com lençóis lavados, é certo, a última refeição não incluiu nenhuma iguaria excepcional - voltou a comer queijo fresco com salmão fumado, sobre o qual espremeu um limão. Estaria com o tumor e ver mal por causa disso. Morrer com um cancro na cabeça seria o seu destino? Que fatalidade! Mas isso só acontece aos outros e não a ela, uma pessoa normal, que nunca foi além de uma gripe, curada em três dias. Só podia ser uma doença grave! O que mais podia ser, ia-se perguntando. Quando saiu de casa, perguntou à primeira pessoa, uma velhota que passou: "Desculpe, pode ajudar-me? Repare no meu olho. De que cor é?". Fechou ligeiramente as pálpebras para se fixar bem e respondeu: "Castanho". Atirei logo: "E o outro?". "Azul, é azul", respondeu. "Como pode ser, ontem tinha dois olhos castanhos", disse-lhe. Com ar rezingão, barafustou: "E ainda reclama. Quem me dera ter pelo menos um azul".

domingo, 4 de janeiro de 2009

Enganos

Enganou-se no autocarro. Quando reparou que aquela era a Avenida de República, foi rapidamente ter com o motorista perguntar-lhe que trajecto era aquele. Afinal, estava no 32 e não no 22, que costuma deixá-la na João XXI. Ficou na paragem seguinte, ao pé do Campo Pequeno. Como estava a chover, entrou no que é um centro comercial, paredes meias com a praça de Touros. Estava esganada de fome. Pôs-se à procura do espaço para refeições. Mas antes de o encontrar, viu uma cara familiar. Sabia que a conhecia mas não sabia exactamente de onde. Resolveu segui-la. Fingiu ver a montra que precedia a que este via. Passado uma boa meia-hora, aproveitou o facto de este mudar de corredor para o confrontar: "Olá. Eu conheço-o, não conheço?". Por mais voltas que dê, não percebe o que a levou a fazer aquilo. Saiu-lhe. Mais espantosa foi a resposta dele: "Não sei. Estou perdido".

Tão simples

João não resistiu a ouvir a conversa do lado. Falavam alto. A rapariga de cabelos lisos dizia que adorava fazer pão para o namorado. Que tinha sido assim que a sua relação tinha começado. A mais ruiva analisava cada frase como se fosse especialista em comportamento: "Quando se faz alguma coisa por alguém, esse bem é devolvido, e o amor pode ser isso, é pôr a funcionar essa ponte, tirar-lhe as portagens!". A criatura mais baixa, que não conseguia perceber se era rapaz ou rapariga, gozava: "Lá estás tu, sabes tudo!". Ainda lhes disse: "Pareces a minha sobrinha de quatro anos que tem sempre uma última palavra a dizer". "Ok, fiz-lhe pão e ele gostou, mas não foi só isso, damo-nos muito bem na cama". Foi quando passaram para este nível que a conversa se tornou irresistível. "No resto, no dia-a-dia, até acho que somos um pouco disfuncionais. Às vezes, ele não entende o que eu digo e mostra-se desatento, quando explico pela segunda vez. Mas não ligo". Alguém aproveitou um silêncio de três de segundos para perguntar: "Como é? Como é entenderem-se bem na cama?". A resposta foi simples: "Quando se gosta, repete-se".

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

Odeio talhos

Rita explicava ao Pedro o motivo da sua ocupação constante. Estava sempre a fazer alguma coisa, a programar o que se seguiria, a planear mesmo o que sabia que não tinha condições para cumprir. Noutros tempos não era assim e sofria. Agora não. Optou por andar distraída. A distracção - agora distração por causa do novo acordo ortográfico, que também muda muitas palavras até aqui com hífen - entretém e evita pensamentos relacionados com a morte. "Estou aqui, mas posso não estar e não estarei qualquer dia", dizia ao Pedro. "Quando olho da janela e procuro céu azul, procuro deitar-me nele, como se tivesse acabado de estender a toalha de praia num dia de sol". Antes não. O azul imenso invadia-lhe o cérebro, fazendo-a pensar em tudo de forma nua e crua. Em poucos segundos, ficava dominada pela tristeza. Evitava as montras de talho, tinha o cuidado de passar para o outro lado quando avistava alguma, pela mesma razão. Carne exposta daquela maneira é pornografia. Agora sim, continuava a contar ao Pedro. Não tinha tempo para depressões. O Pedro perguntou-lhe então: "E não te cansas?". Rita encolheu um pouco os ombros e depois de uma pausa, atirou: "Claro, mas antes cansada que morta".