quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Cinturinha

Fui à missa, rezei pela alma daquele amor e levei-o ao cemitério. Depois, sem que ninguém visse, entre duas campas limpinhas, deixei cair o cinto. Ficou ali. Ele adorava a minha cintura fina e por isso me tinha oferecido aquele cinto.

Extraterrestre

Teresa tinha um problema. Apesar dos filhos, da casa paga, do emprego de prestígio, não conseguia afastar de si uma certa tristeza. No outro dia, quem reparou nisso foi o seu filho. Na esplanada a pé de casa, Rui disse-lhe: "Mama, tens de sair com os teus amigos. Nós já somos grandes, ficamos com a vizinha no sábado. Tens de te divertir!". O conselho do filho perturbou-a. Não só pelo seu sentido de observação, e isto pela positiva, mas por a declaração trazer ao de cima um seu fracasso. Depois do casamento falhado, deparava-se agora com uma pessoa que não tinha sabido dar a volta à sua vida. Resolveu então fazer alguma coisa. Fez uns telefonemas à moda antiga - ainda não tratava o Facebook como aliado de combinações - e na sexta-feira seguinte tinha um programa a cumprir: jantar de amigos e copos. Lá foi. No dia seguinte, ligou à Rita a contar-lhe o que se tinha passado. "Não gostei nada. Senti-me uma extraterrestre".

segunda-feira, 11 de outubro de 2010

Declaração amigável

Quando se sentia zangada com a vida, entre as muitas coisas que gostava de fazer, estava uma ida à oficina preferida para lavar o carro. Adorava lavagens automáticas. Naquele dia, Josefina estava de ressaca (e ela sabia, tinha concluído de uma conversa com uma amiga, que no dia seguinte era uma condutora mais perigosa do que no dia em que se enchia de copos) e lá foi. Deixou-se levar pelo automatismo da máquina, assistiu com prazer à invasão das gotas de água no pára-brisas, extasiou-se com a sucção do aspirador, e saiu da garagem com o seu volvo mais lavadinho. Poucos minutos depois, ainda estava a escolher o tema número 11, o ideal para a banda sonora daquele momento, quando ouviu um estrondo. Bateram-lhe no carro. Ela estava bem, pensou em primeiro lugar. Quando saiu, veio ao seu encontro uma figura de pijama e chinelos, com uma barba rala. Ele deu-se como culpado. Num ápide, como se percebesse bastante do assunto, apareceu com uma declaração amigável. Preencheram os papéis, trocaram números de telefone e ela não resistiu a perguntar-lhe: "Passa-se alguma coisa de especial, por causa do pijama... dos chinelos?". De repente, como que desarmado, Miguel, entretanto devidamente apresentado, responde: "Ia só passar na rua da minha ex-namorada".

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Sumo de laranja

Quando a Alice conheceu o João, ele não podia ter a vida amorosa mais enrolada. O João namorava com a Luísa e tinha dado os primeiros passos em direcção à Carla, que trabalhava com ele. Ela era enfermeira e ele médico e calhou terem de trabalhar juntos em casos difíceis. Nos cuidados intensivos, estão sempre a afastar a morte dos corpos doentes e são levados a olharem-se muitas vezes, a fixarem o olhar. Isso estava a acontecer com frequência. E no outro dia, diante do cansaço do João, a Carla atirou uma frase certeira. "O que nos vale é isto. Parece que estamos a contrariar a natureza das coisas". Daí às risadas para descomprimirem foi um passito. Bem, Alice sabia que estava a entrar num filme cheio de histórias cruzadas e mal resolvidas, embora não soubesse exactamente quais no momento, mas ainda assim, não resistiu ao apelo. O que o João tinha que os outros não tinham era uma sinceridade espremida. Falava como se as palavras fossem sumo. Dizia muito bem o que pensava. Era exacto. E ela gostava da forma como ele pensava. Nunca sentiu a namorada como uma ameaça, contou-me ela. E quando o João lhe falou da Carla, passou-lhe pela cabeça que nascesse dali um caso, hum, um caso de batas e lençóis usados em cenário de hospital. E continuou a sair com ele, só para o ouvir e para se ouvir. E continuou a sair com ele. Ficava nervosa antes dos encontros, mas durante era tomada por uma grande tranquidade. Um dia ele disse-lhe: Arrumei tudo, só estou calmo contigo.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Correr a maratona


Susana estava arriada. E Felismina aussi. A conversa matinal fê-las rir. O que as unia naquele momento é que tinham andado as duas, sensivelmente na mesma altura, com dois Pedros. Foram oito e nove meses em que quase não se falaram. Encontraram-se no outro dia numa passadeira e a seguir fez-se esta conversa no msn.
1- bom dia! dormiste bem?
2- Dormi. Sonhei com ele. Um sonho fixe. E tu, como estás?
1- Só tu, no meio da confusão, encontras sempre qualquer coisa... Estou mais ou menos. Emagreci. Essa é a parte boa!
2- Eu estou a tentar aceitar. É a vidinha.
1- Ainda estou muito entupida, mas um pouco melhor... Agora é um dia de cada vez.
2- Não se pode mendigar amor...
1- Exacto
2- O que podemos fazer é tentar dar o melhor de nós: agora se não gostam, paciência!
1- É uma merda, mas é verdade!
2- Talvez não seja mesmo por aí. Podemos estar a ver o que queremos ver...
1- Pode ser, pode ser. às vezes também penso isso.
2- Cometemos erros, sim, cometemos. Fazem parte.
1- às vezes penso se, no meu caso, não foi tudo uma sucessão de equívocos
2- Pois...
1- Ou se fizemos tudo mal.
2- Mas agora é preciso andar para a frente. Custa. Mas é preciso meter na cabeça que se pode tentar de novo. Ter a noção de que o amor pode vir
1- Bem, que energia é essa!
2- Amar até que a morte não nos deixe mais...
1- É o que o meu pai me diz. "Não podes deixar de acreditar!"
2- Vê as coisas pelo lado dos sentimentos, e do que vale mesmo a pena.
1- Não posso estar mais de acordo
2- O resto, peripécias. Estou também a tentar auto-convencer-me, já percebeste... Pensar pelo lado da sabedoria. Ver de longe em vez de sofrer vendo de perto.
1- Nota-se...
2- A vida às vezes é uma merda, mas antes isto que descobrir um cancro nos ovários! ahahah
1- Isso é que não!
2- Ou então no colon. Ter de andar a mostrar o rabo aos médicos, a toda a gente.
1- Isso não era mau!
2- Ahahahah!
1- Enganei-me.
2- Eu percebi!
1- Tu não existes!
2- Sempre achei os rabos cómicos, hehe
1- Eu gosto de rabos.
2- Mas andar a levar com tubos pelo rabo a cima não deve ter piada nenhuma!
1- Não necessariamente pela veia da comédia.
2- ahahahah
1- Estás com uma energia... Não sei se é bom ou mau sinal.
2- É verdade. Sinto-me com forças para correr uma maratona.
1- Ui! Bem, tenho de trabalhar.
2- eu tb

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Nuvem em cima da cabeça

Silvia vivia mais um dilema típico seu: continuar a fazer de parva, de desentendida, para ver o que aquilo dava, ou saltar fora, sem rede. O tempo das conversas soltas na cama deram lugar a monólogos sem direcção. Luís começou a poupar palavras como se economizasse dinheiro em tempo de austeridade económica. E ela resolveu ser entertainer sem plateia. Contava as suas histórias, ao seu ritmo, gracejava se fosse caso disso, e mesmo que ele se mostrasse absolutamente desligado, continuava. Desde o despedimento do Luís que este mudou, e a relação deles foi-se ressentindo. O novo emprego, numa agência de comunicação rendia-lhe mais dinheiro, é certo. Mas o Luís deixou de ser a pessoa animada e criativa da altura em que era jornalista e em que ia para os copos. A Silvia chegava dizer que não percebia como algumas mulheres não gostavam de ver os maridos a chegar tarde a casa. Ela adorava. Ele vinha sempre com vontade de a compensar da ausência e normalmente nessas noites havia boas movimentações na cama. O Luís não abusava na bebida, por isso, esqueçam lá o mau hálito e os suores intensos. Não havia disso. Em pouco tempo o Luís começou a viver como se andasse sempre com um nuvem carregada em cima da cabeça. E a Silvia só conseguia ter bons momentos com ele, quando dessa nuvem caía chuva e ele falava, falava. Em pouco mais de seis meses, Silvia deu por si a pensar se estava para aturar aquilo. Aguentar alguém assim por mais um tempo para ver se alguma coisa mudava, se o Luís, sacudido por alguém, sei lá, por um acontecimento qualquer, voltava ao que era ou deixava pelo menos aquele autismo nível cinco. Ou, ir-se embora para evitar aquela dor que é ver um amor esmorecer, ficar moribundo, em coma, a entrar no forno crematório. Claro que a Silvia tentou alertá-lo para o que se estava a passar. Porém, como é costume nestes casos, ele estava cego, preso aos seus problemas e reduziu o resto e ela, principalmente, a uma ninharia. Luís passou, entretanto, a estar sempre cansado para a brincadeira na cama. E ela foi desistindo de puxar por ele. Ainda assim, sentindo aquela relação a desgastar-se, Silvia continuou o seu show off: contava-lhe os momentos cómicos do seu dia, continuava a mostrar-lhe os novos temas descobertos por acaso no Youtube. De falar pouco, a importar-se pouco com ela, fez-se um percurso rápido. Um dia ela sentiu-o tão desligado, tão pateticamente centrado no seu umbigo, e percebeu: o melhor era ir-se embora. E foi.