terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

Chá quente

Rita gosta devagarinho. Vai gostando aos poucos. Disse que era mais ou menos o procedimento de beber um chá. Começa por encostar os lábios e se estiver quente, a escaldar, espera um pouco, para que arrefeça. Sopra e aproveita para aquecer as mãos na chávena de novo. E bebe mais um golo. Um atrás do outro. Vai saboreando. Se gosta, bebe ainda mais pausadamente para que o chá dure e não acabe logo. Nem sempre o ritual corre bem, chegou a queimar a língua pelo meio por se precipitar. No outro dia, entrou-lhe pela porta da padaria portuguesa um amor antigo e tornou-se desastrada em segundos. Entornou o chá. Salpicou a mesa e o vestido novo. Teve a empregada de vir do balcão com um pano absorvente. "Está bem assim?", perguntou-lhe, por fim. Rita disse-lhe que sim, embora a resposta correcta fosse: "Nem por isso". Pediu outro chá.


segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Frio

Só me sinto despida quando falo de certas coisas

domingo, 20 de fevereiro de 2011

Foi esta a ordem

Primeiro: brincaram. Segundo, reencontraram-se graças ao Facebook. Terceiro, começaram a trocar mensagens uma vez por semana, duas vezes por semana, três vezes por semana. Seguiu-se o gtalk e o contacto diário. E encontraram-se. Do café, passou a um jantar. E aí entrou pelo meio o telefonema. Ele falou-lhe da falta de jeito para falar ao telefone e foi adiando esse passo. Dizia que era demasiado despachado, que todos o acusavam de secar conversas. Por isso, combinaram fazê-lo com hora marcada. Foi sentadinha no seu banco preferido do jardim Fernando Pessa, ao pé do Forum Lisboa, que atendeu. Era manhã. Não havia ninguém por perto. Falaram. A voz dele soava-lhe outra mas para melhor. Vinha de dentro. E foi aí que ela se deixou levar. Um dia, ele recordou. "O nosso melhor era ao telefone!"

Jeff Bridges, number one

Os Matt Damon, os Jeff Bridges, os Ewan McGregor, os Ethan Hawke, os James Franco têm um charme superior, afirmava em jeito convincente Matilde. "Percebe-se a inteligência e têm uma energia solta, desempoeirada". Rosa preferia o Brad Pitt. Por ser evidentemente giro, e por parecer bem humorado. "Deve dizer piadas a cortar queijo!". As quatro amigas não costumavam falar de rapazes dos filmes como se fossem adolescentes deslumbradas. Nos últimos tempos, as conversas giravam à volta do trabalho, do mau chefe, do incompetente do colega e dos casos amorosos da Maria. Maria tinha agora um outro escritor por perto. E Matilde e Dulce não se cansavam de a avisar: "Ele estará sempre a fazer pesquisa!". Maria sabia disso. Roubavam-lhe sempre alguma cena. Sempre gostou de escritores. Sempre gostou de fotos de escritores. De biografias de escritores. De qualquer modo, não havia motivo para preocupação. Tinha dado fim ao namoro, ainda não tinha era dito a ninguém.

para a Margarida

“Além disso, já não namoramos”, dizia a Margarida. Não estavam juntos, mas ficavam juntos de vez em quando. Não eram namorados. Tinham decidido acabar com aquela relação por motivos claros. Incompatibilidades, resumia a Margarida. Ele fervia em pouca água. "As tuas incoerências, matam-me", barafustava. Ela, por seu lado, irritava-se com a verbalização agressiva dele. Ficava assustada! Margarida chegou a sonhar com os ataques. Ora passeavam descontraídos e dormiam enrolados, ora se zangavam que nem cães. Por vezes, Margarida já não o podia ouvir e ouvir-se. Era dela que também não gostava naquelas discussões. “Por favor, não me digas nada, não me contactes”. E um dia ele obedeceu-lhe. Saiu do Facebook, apagou o número dela do telemóvel. Desapareceu. Ela emagreceu rapidamente durante aquele mês. Perdeu a vontade de cozinhar. Depois disso? Ela foi a casa dele, aceitou a sopa e voltaram ao mesmo.

Linha de pauta

Acordei cedo, andei de bicicleta, pedalei e enfrentei o frio. Senti a pele a ficar rosada sem ser por causa do vinho. Os pulmões estavam a abrir-se e tudo corria bem até ter tropeçado. As mãos não se agarraram ao chão como era devido. Resultado: joelhos esfolados, mãos raspadas pela brita do passeio, três nódoas negras nas coxas. Levantei-me. Olhei para cima. Havia uma nuvem com um nariz saliente a olhar para mim, um avião a rasgar o céu e a deixar rasto, uma linha de pauta de música, como as que desenho quando quero matar tempo, desligar o cérebro, para que descanse. Regressei a casa de bicicleta na mão. Ela inteira, eu acidentada. De volta ao Blackberry, tinha-o deixado em casa, volto à comunicação com os meus. Tinha a mensagem: “Não é dos piores. Nível três. Posso ser operado”.

domingo, 13 de fevereiro de 2011

dia 13

Os dias 13 são óptimos. Se acontecem à sexta-feira, tanto melhor. Anda toda a gente à procura do azar e eu fico com a sorte. Faço o que não faria noutro dia qualquer por não ter medo da reacção. E por que faço qualquer coisa, acontece sempre qualquer coisa que não teria acontecido se não tivesse feito. Mais vale fazer. Ainda que, por vezes, fazer, queira dizer não fazer exactamente nada. Parece que não fazemos nada, mas estamos a fazer. Acontece sempre um maior número de coisas boas quando fazemos qualquer coisa. Podem não suceder logo, tardar, mas vêm depois. Às vezes, chegam umas a seguir às outras. Ficamos sem saber como lhes dar ordem. É uma fartura. Temos de as sacudir e estender com a roupa.

fatias

Fez-lhe um bolo. Ele comeu três fatias. Repetiu três vezes. Empurrou com o chá. Perguntou-lhe se não ia à quarta. Ele disse-lhe que não. "Três, está bem". "Mais um bocadinho?, insistiu. "Não consigo". Ela comeu a quarta e mostrou-lhe a barriga inchada. Ele mostrou-lhe a tatuagem do braço. Ela mostrou-lhe a cicatriz da perna. Mostraram tudo. E quando ficaram sem nada, comeram a quarta, a quinta, a sexta e veio o sábado e o bolo desapareceu para sempre.

Chuveiro

Pedro sabia o quanto ela gostava de gelados. Pensou nisso e foi comer um gelado de morango à Santini, no Chiado. Pedro sabia o quanto ela gostava de sushi. Deu às pernas e entrou porta dentro do japonês perto do Picoas Plaza. Pedro sabia o quanto ela gostava de andar a pé, de se perder em bairros antigos. E andou, andou até transpirar. Voltou então para casa e perguntou de novo: O que é que ela mais gosta de fazer? Encostar o chuveiro com água quente ao peito, era a resposta. Assim fez. Aproximava-se a meia-noite e perguntou então pela última vez: O que é que ela mais gosta de fazer? Dormir.

Amores à portuguesa

Os americanos estão treinados para dizer o que pensam. E fazem-no a dois, mesmo quando custa fazê-lo. Quando se conhecem são mais directos. Inventaram o "blind date", mas depois fazem tudo às claras. Daí as dúvidas próprias aos raciocínios verdadeiros. Há muitos amigos amantes em Nova Iorque. Noutro lado estão os franceses. Gostam da paixão a ponto de a procurar em cada esquina. Ouvem a música que a atiça e inspiram-se em cada esplanada por onde passam. Levam o Gainsbourg que têm em si para as ruas e para não defraudarem a fama de serem bons amantes, capricham o mais que podem. Fazem por isso. Os portugueses têm dificuldade em expressar o que sentem, por não saberem o que sentem e, muitas vezes, ficam bloqueados. Como os computadores. Quando desbloqueiam, depois de uma garrafa de vinho, pode dar-lhes para a poesia. Outros são trapalhões. De qualquer modo, não são de ir comprar cigarros pela manhã. Gostam de um bom pequeno-almoço.

Calças por estrear

Só acho que fico muito boazona com elas e não quero que gostem de mim por causa das calças.