sexta-feira, 23 de setembro de 2011

mais vale um pássaro na perna

Vestia-se como uma senhora entre os 55 e 60 anos, com gosto médio. Nada chocava, nem o tamanho da saia. A meio do joelho. As cores eram sóbrias, e os cabelos médios deixavam ver o pescoço bem desenhado. Pintava o cabelo, claro, mas o novo tom não era ruivo nem castanho, luzia uma cor de chocolate forte. O que destoava era a tatuagem na perna esquerda. Um pequeno pássaro, ligeiramente abaixo do meio da perna. Amélia seguiu-a como fazem os detectives à antiga. E a senhora deixou de o ser, quando se abeirou dela e lhe perguntou: "Desculpe, posso roubar-lhe cinco minutos?". Fez um sorriso e desbloqueou-se a conversa. Contou-lhe ter ficado intrigada com o pássaro estampado ali tão à mão de ver, sendo ela tão discreta. A senhora chamava-se Clara. Clara olhava-a sem medo e quis saber o motivo de tal curiosidade. Amélia explicou-lhe que a saia e os sapatos não tinham que ver com a tatuagem. Clara contou-lhe a história, começando por dizer que morar na Almirante Reis também não tinha estado nas suas previsões. Embora a avenida estivesse a mudar, a impor-se na cidade. Resolveram sentar-se no indiano ali ao pé e pediram chá de jasmim. Clara contou-lhe da tatuagem feita em Nova Iorque. Passaram 20 anos, mais mês menos mês. Foi para lá viver com o Fred. Estavam apaixonados. Passeavam no Central Park. Falou-lhe de várias viagens que fez com ele. Ficando por dizer que era feito do Fred e o significado do pássaro. Desorientou-se a contar o seu passado. Recuava e avançava sem avisar. Por fim, soltou-se: "Um dia o Fred perdeu o emprego e deixou de falar".

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

avental

Transferiu tudo o que sentia pelo Pedro para o Amílcar e nem se apercebeu disso. Era craque em matemática, fazia doutoramento em inteligência artificial, mas não via o mais óbvio. Josefina já não gostava do Pedro e muito menos do Amílcar. Josefina gostava de gostar como gostou do Pedro e o Amílcar estava a jeito. Josefina andava enganada, e nem topava. Desvalorizava o que lhe desagradava do Amílcar e ia andando. Ele cozinhava bem.

és mesmo parva

Josefina tem o dom de ver como as pessoas são em dois minutos. Percebe se são sábias, preguiçosas, pouco espertas e enfadonhas. Tem o dom, mas não o usa. Usou-o em tempos, mas descobriu o quanto aquela percepção lhe complicava o dia-a-dia. Bloqueou-a. Mesmo quando está descontraída e esta funciona automaticamente, procura empurrá-la para o submundo dos pensamentos a evitar. Por isso se faz de parva.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

raio do nariz

Ele tinha um defeito. Tinha sido namorado de uma amiga minha. Não era bem namorado. Tinha sido um caso breve. Coisa do passado, mas preferia não ter sabido. Não ter sabido dos pormenores. Maldita hora em que ela me contou. Estava arrumado, é certo. Nem os conseguia imaginar juntos. Ele é largo e ela quadrada, não encaixariam os braços. Ai, essa mania de imaginar tudo e mais alguma coisa! De resto, a sua companhia prometia horas sem seca. Subia sempre as escadas de casa a correr. Percebi o quanto me estava a agradar quando o nariz me denunciou. Mais uma vez, o nariz. Sempre ele. Pode ser Verão ou Inverno, não interessa. De repente, fica gelado. Ai que há aqui qualquer coisa, o que é que eu faço? Não faço nada. Levo lenços de papel na mala.

depois do verão

Depois do Verão, descansa-se melhor. Antes do Verão éramos adolescentes.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

Fica com ela

Ele gosta tanto do cheiro dela que lhe roubou o casaco. Ontem, agarrou-se a ele como se lhe desse um abraço. Faltava tudo, a estrutura fininha e firme dela, mas estava lá qualquer coisa. Estava obcecado com a ideia de voltar a tê-la nos braços. Pensava nisso antes de adormecer. De manhã, só pensava no pequeno almoço. Mas depois do café, pensava no casaco, e se este não lhe faria falta. Ligou-lhe: "Ficou o teu casaco no meu carro, queres que o leve logo?". Lacónica, ela disse: "Ok". Nada mais. Quando ele lhe entregou a casaco, ela vestiu-o de imediato e ele aproximou-se. "Fica-te bem!". "Sabes", disse ela, "não é meu, é da Rita, ela esqueceu-se dele cá em casa e agradou-me tanto o perfume, que não o devolvi".

disse ela

Quando se gosta, repete-se.