terça-feira, 26 de abril de 2011

Vento, ventania

Nasceu torta mas endireitou-se. Ficou alta, esguia, e à medida que o tempo passava, ia ganhando encanto. Há pessoas assim, dizia o João. Eram essas as pessoas importantes para ele, as que sabiam envelhecer e ficavam a cada dia mais sábias, elegantemente sábias. Na altura, achei ter percebido. Mas não tinha. Andava preocupada com as borbulhas na testa e com um pêlo nas costas do meu namorado. Gostar em crescendo, isso sim me agarra, dizia-me. Falou-me ainda do vento, do seu gosto em procurar locais com vento para namorar. Lembro-me bem. Eram versos soltos para mim, não tinha de lhes fazer a prova dos nove. Eu? Eu atirava-lhe evidências: tu queres que seja assim!

Teresa e Paulo

Teresa e Paulo tinham um ponto em comum. À sua maneira, viviam uma personagem que arranjaram sabe-se lá quando. Um dia Teresa contou-me de um acidente de carro dramático, de um filho nascido sem choro e achei que devia ser por ali. Para os desatentos, Teresa era a pessoa mais animada da freguesia. Sempre achei que era personagem, figura de cera. Havia uma caixa cheia de segredos. Paulo não falava mal de ninguém porque não o sabia fazer e tinha sempre uma piada para contar. Nunca me lembro de o ver em baixo ou em cima. Estava sempre bem disposto, mas da mesma maneira, aplicando o mesmo registo. Teresa foi despedida e nunca mais soube nada dela. Paulo despediu-se antes, por ter desistido, não conseguia aturar tanto desdém, e só esta manhã soube dos motivos. Os dois passaram por mim. Paulo parou ontem. Telefonaram-me a dizer.

segunda-feira, 25 de abril de 2011

Pedacinhos

António gosta de queijo. Havia queijo e ele veio. Falámos de queijo, provámos os queijos, e continuámos. O queijo ficou lá para trás, arrumado, embrulhado, alojado na prateleira arejada. Quando se foi embora, foi-se embora. E eu acabei por voltar aos queijos, a um pedacinho de cada um.

Martices

Agora só preciso de me desabituar a ele.

É isso

-Podes pensar o que quiseres!
- Nunca tinha pensado nisso.
- Nunca me aborreço por estar sempre entretida a pensar.
- Mas posso não dizer o que penso?
- Exacto. A maior liberdade é essa. A grande sorte. Depois se a conjugares com o que fazes, tens a liberdade de acção. No 25 de Abril abriram-te essa possibilidade. Até aí não podias dizer o que pensavas. Havia muita gente de boca calada.
- Não conseguia viver assim, tia!
- Se tivesses nascido nesse tempo, serias como os outros e terias medo. Depois, como tinhas a tal liberdade de pensar, farias a revolução.
- Seria revolucionária! Quero dizer o que penso! Mas não devo dizer tudo o que me passa pela cabeça, não é?
- Eu não digo, sobretudo para não magoar as pessoas, mas sei que posso fazê-lo, percebes?
- Eu antes falava tudo... mesmo que me abram a cabeça não me tiram de lá os pensamentos, mesmo que me abram a cabeça não me os tiram, é isso?
- É isso.