terça-feira, 24 de janeiro de 2012

coisas que se estragam

Só se estraga o que era bom
e se era bom, funcionava
e se funcionava, era útil
e se era útil, faz falta
e o que falta é o que nos move.

domingo, 22 de janeiro de 2012

Árvores na cidade

São precisas mais árvores na cidade.
Os troncos fortes agarrados à terra inspiram certezas.
As folhas sujeitas ao vento dão-nos a banda sonora, embalam.
Não sei porque não plantam mais árvores na cidade
se sobram canteiros vazios.
Uma árvore não pede para ser levada a passear todos os dias,
nem obriga a uma muda da areia regular.
A árvore é a coisa mais simples que há.
E os seus ramos sempre foram o meu sonho de braços


sábado, 21 de janeiro de 2012

no dia em que cresceu

Quando a Dulce se olhou demorada e profundamente ao espelho, como lhe desafiou a Marta a fazer, descobriu uma nova percepção difícil de aceitar. Era um pouco feia. Pelo menos, menos bonita do que se imaginava na maior parte do tempo dos seus dias. O espelho de manchas castanho dourado que tinha à sua frente mostrava-lhe traços desequilibrados. Se se visse de fora, será que se apaixonaria por ela? Lembrou-se da sua avó, do que lhe dizia vezes sem conta. Da avó que tinha dificuldade em dizer a idade, por achar que o número não lhe pertencia. Dulce nunca teve problemas com a sua imagem. Sempre actuou como se fosse dotada de uma beleza mediana ou acima da média, caso se comparasse com quem costuma ver no metro à hora de ponta. Aos olhos dos outros, a forma como a fitavam, confirmavam-no. Achava ela. Lá em casa, a perspicácia, a reacção rápida, energia, e boa disposição bastavam. A vitalidade e o humor é que interessavam. No dia em que se observou de outra maneira, cresceu.

Inverno

Os amores de Inverno duram mais. Ninguém quer sair cedo da cama. Nem que seja pelo quentinho das mantas ou edredon. E dá-se tempo.

veste a minha pele

Somos muito mais bonitos por fora. As entranhas têm porcaria e cheiram mal se ficarem ao ar. A pele tapa tudo e protege. Esconde e deixa ver. A pele atrai.

morcego

No meu prédio, a média de idades, se me retirar das contas e aos vizinhos novos do rés-do-chão, é 90 anos de idade. Por isso, costumo encontrar alguém parado nas escadas com uma mão em cima do corrimão. São as pausas antes de mais três degraus. Não vivem ali crianças, cães, mas há um morcego e soube-o da forma mais improvável. Ouvi-o numa conversa na tasca do Jorge. Ele estava tão impressionado. O Jorge, um homem forte sem medo de malfeitores, estava com os olhos presos, nem pestanejava. Um morcego? Uma pessoa a quem chamam morcego. A neta da senhora Alice, falecida antes do Natal, ficou de arrumar as coisas da avó enquanto não se põe a casa à venda. E foi ficando. No outro dia, a vizinha Mariazinha foi lá pedir-lhe um ovo, fez-se convidada e entrou. Conta que o apartamento estava imundo. Amontoavam-se pacotes de comida na cozinha. Do que espreitou no quarto, a roupa estava organizada em montes. Parecia a casa de alguém que perdeu o tino. Telefonou à filha da Alice e ficou a saber de tudo. A sua sobrinha era estranha. Na família é conhecida como o morcego. Fala pouco, pinta os olhos de negro profundo, não convive com ninguém, à excepção do namorado, igualmente figura sinistra. "Ela não lava roupa, compra peças e mais peças, todas elas baratas". A Mariazinha viu um barata gigante a sair da cozinha e está preocupada com um ataque em massa. O prédio tem um morcego a viver no terceiro andar e eu nunca o vi subir as escadas.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

cão sem trela

Josefina sabia do quanto ele gostava dela. Durante o abraço, os seus joelhos falhavam. O que não percebia era a contradição. Não aparecia na hora combinada. Desmarcava. Estava sempre atarefado. Foi tolerante, tolerante, até um dia. Uma tarde atirou-lhe à cara as contradições e pôs um ponto final. Gostava muito dele, mas preferia estar com pessoas de quem gostava menos nesse Inverno. Não quer ter laços, dar conta da sua vida. Se for um cão sem dono, pode estar sem ladrar o tempo que lhe apetecer.